Por Joaquim Fernandes*

A génese histórico-teológica de uma crença

A “Senhora vestida de branco” tem uma milenar cronologia. Antes de Fátima, enumeram-se milhares de alegadas “aparições marianas”. A crença remonta ao ano 380 da era cristã e ao Oriente grego, como recorda a historiadora francesa Sylvie Barnay. Com fundamentos ponderosos: na paisagem cultural da Ásia Menor perdurava de há muito a tradição das deusas-mães, ecos dos cultos da fertilidade e que serviu de fermento à potencial piedade mariana, regista o teólogo Hans Kung.  

O “pai da igreja” Gregório de Nissa (m. 397) é tido como o fundador da crença, introduzindo no ocaso da Antiguidade um modelo de narrativa que se iria desmultiplicar nas torrenciais hagiografias e vidas santificadas, nos séculos vindouros quando contaminou toda a Idade Média europeia ocidental. Os “visionário” eleitos são-no de todo o jaez: homens e mulheres de “santidade e virtude” na reclusão conventual, mas também poderosos arrogantes, mendigos e doentes, pecadores sem perdão. A todos, a imagem da Virgem Maria surge como intermediária, espelho do próprio Deus, em cada interlocutor-vidente medievo, dos seus sonhos e desesperos.

Das geografias orientais, entretanto tomadas pela cristandade imperial ortodoxa, a crença mariana emerge mais tarde no Ocidente, já no século IX, atingindo um primeiro fulgor no século XII, com o decisivo contributo do monge cisterciense Bernardo de Claraval. A partir daí irrompem, como lembra Jean Delumeau, controversas teológicas marcadas pelo dogma da Imaculada Conceição cujo lugar na hierarquia celestial do edifício cristão havia sido irreversivelmente marcado pelas decisões do Concílio de Éfeso, no ano 431: Maria, a que concebeu Deus (theotokos) superando “a que concebera Cristo” (christotokos) gerou um enunciado cristológico prenhe de consequências que perduram até hoje. Uma definição que serviu os interesses de um homem – Cirilo de Alexandria, o grande vencedor do conclave contra os representantes de Antioquia. As raízes longevas de uma hiperdulia (hiperveneração de Maria) estavam fundadas para sempre.     

As chamadas ” aparições marianas”, como revelações e cultos privados, não fazem parte de nenhum dogma da Igreja Católica. A fé católica romana assenta no dogma da Revelação cristã inscrita nos Evangelhos, como relembrou o cardeal Josef Ratzinger, papa emérito Bento XVI. Face à Palavra, objeto de fé divina, as chamadas “aparições” relevam somente da fé humana e são meras manifestações discutíveis no quadro dogmático reclamado pelos textos canónicos. Foi com Bento XIV e o Concílio de Latrão V (1515) que se estabeleceram normas racionais de análise de julgamento destes fenómenos ambíguos e Pio X (1907) consagrou-lhe uma atenta normativa que conferia a possibilidade de uma “aparição” ser proposta ao julgamento dos crentes sem que tal lhes fosse imposto.    

Assim, a Igreja Católica não cauciona “videntes”, mas crentes; reconhece os lugares de peregrinação, mas muito raramente se manifesta sobre a autenticidade das chamadas “aparições”. Donde, nenhum católico é obrigado a aceitar o fenómeno aparicional mariano como certidão irrefutável de uma presença física ou outra da Virgem Maria, que morreu há 2 mil anos. Essa reserva justifica que um dos mais considerados especialistas desta matéria, o teólogo francês René Laurentin, use de aspas para grafar o seu monumental “Dicionário das “Aparições” da Virgem Maria”: aqui, descreve cerca de 2500 aparições historicamente registadas, sendo que Fátima se situa é a oitava numa lista de 14 episódios validados pelo crivo exegético católico. As restantes têm um julgamento ostensivamente negativo: non constat supernaturalitas (o sobrenatural não está provado).

Acaso ou precognição?

Porto, 11 de Maio de 1917

Srs. Redatores: (…) no dia treze do corrente, há-de dar-se um facto… que impressionará fortemente toda a gente.

                Anúncio em três jornais portuenses, em 13 de Maio de 1917

No próprio dia, no Porto, dois meses antes nos jornais de Lisboa, o “13 de Maio” de 1917 é como que “antecipado” por mensagens crípticas de anúncios publicados nas páginas da imprensa diária portuguesa. Aparentemente, para os mais apressados, este dado inesperado reverteria a favor de uma deliberada fraude, planificada pelos beneficiários futuros das aparições – a Igreja Católica-, nomeadamente a sua hierarquia e os fervorosos crentes. Todavia, a conclusão é ilusória. A crítica dos próprios documentos em causa (sua génese, teor e verosimilhança) não suporta uma intenção de cabala organizada. Muito menos Lúcia se poderia ter inspirado na leitura dos anúncios… As prováveis “inspirações” da vidente, que a investigação histórica vem rastreando, foram de outra ordem, após o 13 de maio, intermediadas por agentes clericais identificados. 

O modelo dessa precognição dos eventos pode causar certamente incómodo e controvérsia. Não se trata aqui de garantir ou desmentir a eficácia de um processo complementar a uma doutrina – o espiritismo – mas tão só de registar o sincronismo de uma ocorrência, estrita e historicamente documentada, antes de um eventual veredicto sobre os seus critérios e fundamentos científicos. 

Temos, assim, que vários anúncios de um “facto impressionante”, a ter lugar no dia 13 de Maio de 1917, foram publicados na imprensa nacional. E este facto não pertence à esfera da crença. Terá a ver com discutíveis leituras e interpretações, mas não deixa de ser uma realidade intransponível ou até mesmo inconveniente. As notícias de jornais são factos cuja verificação pode ser atestada por qualquer um. Não se pode manipular jornais impressos, disponíveis numa qualquer biblioteca pública.

Em finais da década de 1970, a historiadora Fina d’Armada logrou abrir um capítulo pioneiro num tema sensível, tendencialmente debatido essencialmente com o coração e muito pouco com a razão, pelo maniqueísmo redutor. Em 1982, com o autor destas linhas, foram expostos pela primeira vez aos olhos profanos os inquéritos originais e oficiais das “aparições”, as suas divergências e problemas à luz da crítica histórica, comparada e multidisciplinar. Uma década depois, esses materiais estão ao alcance da opinião pública e especializada nos volumes da Documentação Crítica de Fátima.     

A “mensagem” de 7 de Fevereiro recebida em Lisboa

 “Senti um calor em todo o braço até ao ombro… Tive a impressão que tentavam chamar-me a atenção. Sem saber porquê, peguei num lápis e num papel que se encontravam próximos. A minha mão começou a escrever com uma letra que não era a minha…”

Esta descrição refere-se a uma reação típica de escrita automática ou psicografia, frequentemente reivindicada pelos mediuns em sessões espíritas. Quem refere esse processo de receção de este peculiar meio de comunicação é Filipe Furtado de Mendonça que, num opúsculo da sua autoria, intitulado Um raio de Luz sobre Fátima (Luanda, 1974), viria a reforçar o teor inusitado de um pré-anúncio, oferecendo-nos um testemunho detalhado dessa invulgar scéance, reproduzida em forma de Acta.

Aconteceu a 7 de Fevereiro de 1917, em Lisboa. Um grupo de pessoas lideradas por um médium chamado Carlos Calderon, afamado músico na época, futuro cofundador da atual Sociedade Portuguesa de Autores, reuniu-se na capital para “trabalhos psíquicos” regulares. Nessa noite, um dos sensitivos, como assinala o opúsculo, recebeu uma “mensagem” sob a forma de “escrita automática”. Na “Acta” a que aludimos descreve-se que “um dos assistentes (talvez o próprio Carlos Calderon) pediu papel e lápis e automaticamente escreveu da direita para a esquerda uma comunicação que não se pôde ler senão com o emprego de um espelho ou colocando-a em frente duma luz, podendo então ler-se pela parte de trás”.

Que dizia o essencial da mensagem?

“A data de 13 de Maio será de grande alegria para os bons espíritas de todo o mundo. Tende fé e sede bons. Ego sum charitas.

Sempre a vosso lado tereis os vossos amigos, que guiarão os vossos passos e vos auxiliarão na vossa tarefa. Ego sum charitas.

A luz brilhante da Estrela Matutina vos alumiará o caminho.               

Stella Matutina”.

Se atentarmos no fac-símile da mensagem publicada por Furtado de Mendonça nem toda a comunicação aparece escrita, pelo punho do médium, da direita para a esquerda. A última frase e a assinatura aparecem escritas normalmente, sem necessidade de espelho para a sua leitura. Verifica-se que a letra é diferente.

É lícito propor que este aviso estará ligado aos eventos da Cova da Iria. Não vemos, na conjuntura histórica da época, na conta-corrente da Grande Guerra em curso, um outro episódio relevante, extraordinário, que possa justificar a alegada nota “premonitória”. Como se vê, também não é uma mensagem anónima, de qualquer “espírito de defunto” não identificado. A assinatura é pomposa – Stella Matutina.

Quem é esta Stella Matutina? Na tradição popular portuguesa está duplamente identificada: a “estrela matutina” designa duplamente o planeta Vénus e a Virgem Maria.         

Obviamente nenhum livro apologético das aparições, em sermão eclesiástico ou documento episcopal chamou a si este “regresso ao futuro”. Talvez porque o espiritismo era e ainda é uma doutrina excluída pelos cânones católicos e denegada pela cultura dominante. Mas, revendo a cronologia paralela dos dois subsistemas de crença, vemos um curioso sincronismo entre a emergência da primeira vaga do “espiritualismo moderno”, com as irmãs Fox, nos Estados Unidos, na década de 1840, e a vaga europeia de “aparições marianas” europeia, com La Salette (1846) e Lourdes (1858)…

Tudo isto causa perplexidades, no mínimo, face aos pressupostos concebidos e cristalizados durante décadas.  

Segundo Furtado de Mendonça, ”para que não pudesse haver dúvidas sobre a veracidade do facto sucedido”, o grupo resolveu exará-lo na Ata da reunião. Manifestava-se a intenção de “seguir com a máxima atenção o desenvolvimento deste assunto” e que “se tomasse nota da opinião da Igreja Católica para não haver no futuro dúvidas sobre aquela douta opinião”. Um pressentimento que adensa o mistério…

Decidira-se ainda publicar um pequeno anúncio, no Diário de Notícias, adquirindo-se 35 exemplares do diário. Assim, consultando a edição do periódico, do dia 10 de Março, encontramos na 4ª página, 13ª coluna, um anúncio encimado pelo título “135917” – 13 de Maio de 1917 – onde se manifesta a ideia de uma paz próxima para alguém…

Curiosamente, Furtado de Mendonça afirma que, nessa época, “numerosas foram as comunicações que se receberam do Astral anunciando para breve a assinatura da paz entre as diversas nações em guerra”. No entanto, essas mensagens foram descartadas por muitos e julgadas como fruto da imaginação exaltada dos médiuns. Até ao dia 7 de Fevereiro de 1917.

“Revelação sensacional” recebida no Porto

O Diário de Notícias, de 10 de Março de 1917, não é a única surpresa histórica da antecipação dos fenómenos de Fátima. Não ficou por aí a “publicidade” ao dia 13 de Maio próximo futuro, o pré-aviso de um facto transcendente, ao nível da imprensa portuguesa. Também no Porto outros foram recetores da mesma singular antevisão.

O pré-aviso foi dado à estampa nas edições de 13 de Maio de 1917 dos principais diários da cidade e âmbito nacional: o Primeiro de Janeiro, à época o maior diário nortenho, o católico Liberdade e o Jornal de Notícias.

Ta como os restantes o JN recebeu o texto datado de 11 de Maio, subscrito por um espírita de nome António, residente no Porto. O anúncio informava os ”srs. redactores” que:

“Foi participado pelos Espíritos que no dia treze do corrente háde (sic) dar-se um facto, a respeito da guerra, que impressionará fortemente toda a gente. Tenho a honra de me subscrever, espírita e dedicado propagandista da verdade. António.”  

O Jornal de Notícias fez a ligação do anúncio ao sangrento conflito europeu, concede-lhe a primeira página com um subtítulo “revelação sensacional” no noticiário da Grande Guerra, grafado a negro, mas o texto fica-se pela relação da “guerra com o espiritismo”. Nos outros dois periódicos, os jornalistas não resistiram a produzir comentários jocosos. Um “espírita profeta” era algo exposto ao anedótico. Lúcia iria ter mais sorte, com o apoio das instituições mais poderosas do seu tempo, capazes de formatar a opinião pública.     

No jornal Liberdade, por seu turno, dizia-se em tom de ironia, que nesse dia 13 de Maio se ia dar algo importante “a respeito da guerra, de grande transcendência e de grandes consequências. Se tal não se der, ficam desacreditados os espíritos e a sua encarnação material”. No jornal O Primeiro de Janeiro, quem comenta em profundidade o teor do postal de “António” é Guedes de Oliveira, um respeitado jornalista da época, que assinala a revelação, também na primeira página, com o título “Espiritismo”, à maneira de editorial, com pitorescas alegorias ao enigma da data preconizada na informação do adepto espírita.

Conspirações as mais diversas foram sendo propostas, ao longo do último século, para a fundação dos eventos de Fátima. Não se vislumbra neste caso que uma antecipação do potencial 13 de Maio, sustentada na mediunidade espírita, fosse admitida então pelos hierarcas católicos. Podendo utilizar os seus próprios trunfos – se fosse caso disso – não iriam socorrer-se de “práticas espíritas”, nem mesmo admiti-las, já que concorreriam, por certo, para o descrédito dos eventos imediatamente seguintes. Os espíritas, designadamente através da pena de Furtado de Mendonça, relacionaram essa mensagem com as aparições de Fátima, mas discordam da interpretação oficiosa sobre a identificação da “senhora vestida de branco” e o chamado “milagre do Sol”. Para o indefetível adepto, o que aconteceu em Fátima, em 1917, “não foi uma visão de Maria de Nazaré, mãe de Jesus Cristo, mas sim uma manifestação crística, sendo os três pequenos videntes excelentes médiuns”. Quiçá Lúcia tenha usufruído, sem o suspeitar, dos mesmos “canais” de perceção extrassensorial do médium de 7 de Fevereiro…    

Em resumo: a Igreja Católica “beneficiou” de uma aparição mariana, mas rejeita o pré-anúncio; os espíritas têm em mãos o pré-anúncio, mas rejeitam a versão da aparição mariana.

Uma agenda de questões e desafios

Dois dias antes, a 10 de Maio do mesmo ano, num pedregoso ermo do Barral, Ponte da Barca, um outro pastor, Severino Alves, de 10 anos, revelou ter sido visitado por uma “senhora” radiante que lhe disse no dia seguinte para rezar o terço. A nova correu na imprensa regional a partir de 9 de Junho. Mas o bracarense e católico “Ecos do Minho” estava muito longe da expansão nacional de O Século, cujo redator Avelino de Almeida verteu nas páginas do diário lisboeta, de 15 de Outubro, o relato emocionado do chamado “milagre do Sol”, do dia 13 anterior. Ironia da História: se o humilde jornal de Braga não serviu para fazer vingar o culto à Senhora do Barral, o periódico lisboeta, republicano e jacobino acabaria por ajudar à promoção de Fátima pela pena do seu cético jornalista Avelino de Almeida, aturdido pelo espetáculo “solar” sobre a multidão em 13 de Outubro.   

O repertório das “aparições marianas” pode ser indexado ao corpus heterogéneo do fabulário do maravilhoso cristão e pagão, gerado por contributos milenares, particularmente fértil ao longo da nossa história coletiva. Coabita com outro grande afluente lendário no mesmo ecossistema – covas, grutas, árvores e fontes – da sua etnografia e atores da ruralidade profunda: as “mouras encantadas”, legado da Reconquista do espaço ibérico, depois do ano de 711, aos muçulmanos, e cujas narrativas se replicam em modelos invariantes, tal como as “aparições” associadas à Virgem Maria. A fórmula aparicional tipo “mariana” parece mover-se nos arquétipos de um mundo onírico de Oz, de Alice e do seu espelho, a que os três pequenos pastores de Fátima puderam ocasionalmente aceder.

Talvez a sua natureza última se mova entre dois mundos: o real e o imaginário e traduza uma espécie de “mundo terceiro”, epifenómeno a que pensadores, como Henri Corbin ou Gilbert Durand, definem como imaginal: a faixa etária dos “videntes” é compatível com a das crianças comuns de hoje e dos seus “amigos imaginários” com que “brincam no quarto”. Tal como Jacinta alegou, quando questionada em Julho de 1917, ter visto à noite, e por várias vezes, uma “mulher pequena” à borda do alçapão do sótão…   

O fenómeno de 1917 teve uma gestação, lenta e inexorável, de “rumor em progresso” impondo-se por circunstâncias conjunturais históricas propícias e bem identificadas. Por outro lado, alimentou-se da inexistência de instrumentos científicos adequados como os de hoje, entre outros, como os da neurolinguística ou disciplinas médicas com recursos a exames simultâneos às reações dos “videntes” e dos seus “estados modificados de consciência” – ECG e outros – e dos recursos tecnológicos audiovisuais de hoje no caso do chamado “milagres do Sol”. Resistem ainda aspetos fenomenológicos problemáticos em torno das “aparições” que justificariam outras análises fora desta resenha específica. 

Em Fátima, 1917, só o sistema de crenças dominante – os “quadros de referência” de que fala Bento XVI, enquanto cardeal Josep Ratzinger – poderia dar sentido à excecionalidade alegada da “visão” mediada por Lúcia, tal como sucede nos contextos culturais contemporâneos com as experiências visionárias laicas: a jovem e os primos poderão ter experienciado de facto algo inusitado, mas cada sistema de crenças procura integrar o desconhecido nos seus códigos culturais, legitimados no espaço e no tempo específicos. Ratzinger sublinha que “o sujeito vidente vê segundo as suas capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis”. Ou seja, (quase) nada do que parece é, de facto, no mundo das “visões interiores”.

De posse desses dados tanto os recetores como as estruturas de controlo das crenças tendem a produzir um sentido e um significado: um muçulmano só “vê” Maomé, como um hindu tende a “ver” Visnu ou um budista só “contemplará ” o inefável Buda…Tal como hoje um jovem urbano cosmopolita tenderá a “ver” alienígenas. Noutras culturas pré-cristãs, a “senhora vestida de branco” seria muito provavelmente Belisama na antiga cultura celta, ou Orejona na antiga Bolívia, tal como Astarte na Síria ancestral, Afrodite na Grécia de Platão ou Vénus na Roma antiga…

Em Julho de 1917, um jornal regional, O Ouriense, apregoava já a certeza inabalável que era Nossa Senhora quem falava aos pastorinhos. De ordinário, a meio do ciclo das “aparições”, já se vendiam pagelas com a imagem estereotipada da Virgem Maria na ausência de qualquer juízo declarado por parte das autoridades eclesiásticas ou que Lúcia confirmasse sequer a identidade da “mulherzinha de branco”! Um dos interrogatórios de 1917, feito pelo padre Ferreira de Lacerda aos videntes, é o exemplo lapidar de uma indução que sugeria fatalmente a resposta de Lúcia acerca da identidade da visitante celeste: “Então o que te disse Nossa Senhora“? – a pergunta indevida que qualquer psicólogo de hoje nunca deveria fazer…

Fosse como fosse, depois de no dia 13 de Maio a jovem Lúcia ter dito à mãe que vira uma “senhora brilhante” em cima de uma azinheira, Manuel da Silva, tio de Jacinta, encarregou-se de colocar o selo final de garantia na “aparição” assegurando em definitivo: “se os cachopos viram uma mulher vestida de branco quem poderia ser senão Nossa Senhora”? A partir daqui, tão decretada certeza jamais poderia ser invertida.

*Doutor em História, membro do CTEC (Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, Universidade Fernando Pessoa. Co-autor, com Fina d’Armada, da obra “Fátima nos bastidores do Segredo” (Âncora Editora, 2001), entre outras, e co-editor da antologia “Fátima mais além da Fé” (Verso da História, 2017).